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Par metanoia1 le 8 Novembre 2011 à 16:32
Do rico reservatório de símbolos que são usados para expressar a mística das várias religiões do
mundo, nós selecionamos aqui o símbolo do espelho, pois, melhor que qualquer outro, ele e adequado para
expressar a essência da mística, e ao mesmo tempo seu caráter essencialmente gnóstico ou sapiente. O espelho
é o símbolo mais imediato da contemplação espiritual, e mesmo do conhecimento ('gnosis') em geral, porque ele
retrata a união de sujeito e objeto.
Ao mesmo tempo este exemplo serve para demonstrar como os vários significados de um símbolo, que se
referem a muitos níveis diferentes da realidade e que podem parecer por vezes contraditórios, são internamente
coerentes, e estão harmoniosamente, contidos no significado total da imagem, que é puramente espiritual em si
mesmo.
A multiplicidade de significados é inerente à própria essência de um símbolo; e daí advém sua
vantagem sobre as definições racionais. Pois, enquanto a última organiza um conceito a partir de suas
conexões racionais - assim fixando-o em um dado nível - o símbolo, sem perder nada de sua precisão ou
claridade, permanece "aberto ao superior"(1) . Ele é acima de tudo uma "chave" de realidades supra-racionais.
Ao invés de "realidades supra-racionais" nós poderíamos falar igual, mente de "verdades
supra-racionais", e enfatizamos este ponto, pois tem-se o costume de explicar o sirabolismo em termos
puramente psicológicos. Não que uma interpretação psicológica seja necessariamente errada era todos os casos,
pois ela pode ser uma possibilidade. 0 que é absolutamente falso e a visão que a origem do símbolo deve ser
encontrada no assim chamado "inconsciente coletivo", em outros termos, em um substrato caótico da alma
humana. O conteúdo de um símbolo não e irracional, mas supra-racional, ou seja, puramente espiritual. Esta não
e nenhuma tese no va, mas pertence à ciência do simbolismo que está presente em toda tradição espiritual
genuína.
Aqui nossa abordagem e puramente principiai : o simbolismo do espelho é tão luminoso porque, em
certo sentido, o espelho e o símbolo do símbolo. O simbolismo pode em verdade ser melhor descrito como
reflexo de idéias ou protótipos que não podem ser plenamente expressos em termos puramente conceituais. É
neste sentido que São Paulo diz: "Agora vemos em espelho e de maneira confusa, mas, depois, veremos face à
face. Agora o meu conhecimento é limitado, mas, depois, conhecerei como sou conhecido." (I Cor. ,13, 12)
O que é o espelho no qual o símbolo aparece como a imagem de um protótipo eterno? Primeiro é a
imaginação, se estivermos pensando na natureza visual ou "plástica" do símbolo em contraste com os conceitos
abstratos. Mas em um sentido mais amplo, é a mente que, como faculdade de discriminação e conhecimento,
reflete o Intelecto puro. Em uma abordagem ainda mais ampla, o Intelecto é ele mesmo o espelho do divino Ser.
Plotino diz do Intelecto ('Nous') que ele contempla o Um infinito, e dessa contemplação, que não pode jamais
exaurir seu objeto, procede o mundo como uma imagem sempre imperfeita que pode ser comparada à uma
reflexão continuamente interrompida.
Ainda uma outra característica da reflexão é que, dependendo da forma ou posição do espelho, o
objeto aparece mais ou menos claramente. Isso também pode ser aplicado à reflexão espiritual, e foi neste
sentido que os mestres sufis disseram que Deus revela a Si mesmo ao Seu servo de acordo com a prontidão ou
capacidade de seu coração; Ele toma, por assim dizer, a forma do coração do Seu servo, assim como a água
toma a cor do copo que a contém.
Nessa correlação, o espelho do coração é comparado à lua, que, dependendo de sua posição no
espaço, reflete de modo mais ou menos perfeito a luz do sol. A lua e a alma ('nafs'), que e iluminada pelo puro
Espírito ('rûh'), mas, estando ainda atrelada ao tempo, sua receptividade tem de sofrer mudanças ('talwîn'). O
processo de reflexão é talvez a imagem mais perfeita do "processo" de conhecer, que não se limita ao nível
racional. 0 espelho é o que ele reflete, na medida em que o reflete. Enquanto o coração - i.e, o Intelecto
cognitivo - reflete a multiplicidade do mundo, ele é o mundo, estando de acordo com o modo do mundo,
especificamente com a cisão entre objeto e sujeito, entre exterior e interior. No entanto, à medida que o espelho
do coração reflete o Ser divino, ele é precisamente o Ser, estando de acordo com o modo indiviso do puro Ser.
Nesse mesmo sentido o Apóstolo Paulo disse: "E nós todos que, com a face descoberta, refletimos como num
espelho a Glória do Senhor, somos transformados nessa mesma imagem..." (II Cor.,3.18)
Gostaríamos agora de considerar o símbolo do espelho a partir de um outro ângulo. Rasar. al-Basrî, um dos
primeiros místicos do Islã, compara o mundo em sua relação com Deus à imagem refletida do sol que é
produzida pela superfície lisa da água. Tudo que nós podemos conhecer da imagem refletida provém do objeto
original mas este e completamente independente de seu reflexo, e está infinitamente acima e além dele.
Para procurarmos entender essa comparação a partir da "unicidade da existência" ('vahdat al-wujud')
- o conceito fundamental do mistiscismo islâmico - é preciso saber que a luz simboliza o Ser e conseqüente
mente a escuridão simboliza o nada; visibilidade é existência e invisibilidade é ausência. Somente o que está
refletido no espelho é visível. A presença do espelho só é revelada pela natureza do reflexo e pela sua pura
possibilidade. Em si mesmo, na ausência de luz, o espelho é invisível, e isso significa, em concordância com o
significado da comparação, que em si mesmo ele não existe.
Disso para a doutrina hindu de maya é apenas um passo; maya, o poder divino em virtude do qual o
Infinito manifesta a si mesmo no finito, cobrindo-se com o véu da ilusão. A ilusão consiste no fato da
manifestação (i.e, reflexo) aparecer como algo existente fora da Unicidade Infinita, É maya que dá nascimento a
isso; e maya, à parte os reflexos que vêm sobre ela, é pura possibilidade ou função do Infinito. Se o universo
como um todo e o espelho de Deus, o homem, também o é na sua natureza original, pois contém
qualitativamente o universo inteiro, o espelho do Um. Nesse sentido, Mahyi'd-Dîn ibn'Arabi (sec.XIII) escreve:
"Por causa de suas inumeráveis perfeições, Deus quis contemplar Sua própria essência em um objeto que
abrangesse toda a realidade, para assim manifestar Seu próprio mistério a Si mesmo...Pois o conhecimento que
um ser tem dele próprio, em si mesmo, não e igual a conhecer-se através de outro, que lhe serve como espelho.
Tal espelho mostra a ele mesmo na forma que corresponde ao 'plano de reflexão' no qual pousa seu olhar, uma
forma que não existiria sem esse 'plano de reflexão' e o reflexo que dele resulta..."0 que o Ibn'Arabi tinha em
mente e, por um lado, o "puro receptáculo" da 'matéria prima' ('al-gabil') e, por outro lado, Adão; 'matéria
prima' no sentido do espelho que ainda e escuro e no qual a luz não brilhou, enquanto que o Adão e "o
verdadeiro brilho desse espelho e o espírito dessa forma" (Pusus al-Hikam, capítulo sobre Adão).
O homem é assim o espelho de Deus. A partir de um ponto de vista mais esotérico, Deus é o espelho
do homem. A esse respeito, Ibn'Arabi escreve no mesmo trabalho: "O homem, para o qual a Essência de Deus
se oferece ao conhecimento, não vê a Deus; ele apenas vê sua própria forma no espelho de Deus. Não é
possível que ele veja a Deus mesmo, apesar dele poder saber que só pode observar sua própria forma n'Ele. Esse
processo se dá à maneira de alguém olhando em um espelho, vós olhais não o espelho em si, mesmo que
saibas que só podeis olhar vossa própria forma por causa do espelho. Deus mesmo proporcionou esse
fenômeno como o melhor símbolo de Sua Auto-revelação, para que quem quer que receba tal revelação saiba
que não pode ver Deus... Tentai por vós próprios, quando olhardes o reflexo em um espelho, e não poderás ver
o espelho em si; vós nunca o verás. Tanto isso é verdade que algumas pessoas, observando essa lei da reflexão
em espelhos [físicos e espirituais] , têm afirmado que a forma refletida se interpõe entre o espelho e o
observador. E claro que tal não ocorre; na realidade e como acabamos de dizer [ou seja, que a forma refletida
não se coloca entre nós e o espelho, não o esconde de nós; na verdade é apenas graças ao espelho que nos
podemos ver a forma nele refletida),.. Se vos apreendes isto [que a criatura em contemplação nunca vê a
Essência mesma, mas apenas sua própria forma no espelho da Essência , apreendestes o limite extremo que a
criatura pode alcançar; portanto não aspires por menos e não canses vossa alma buscando ultrapassar esse grau
de modo 'objetivo') , pois em princípio e de fato não há nada além, senão a pura nao-existência a Essência
mesma sendo não-manifestada)". (Fusus al-Hikam, capitulo sobre Seth).
Na mesma linha, Meister Eckhart escreve: "A alma contempla a si mesma no espelho da Divindade.
Deus Ele mesmo é o espelho, o qual Ele oculta de quem Ele quiser, e descobre para quem Ele quiser. Quanto
mais a alma é capaz de transcender todas as palavras, mais ela se aproxima do espelho. Nesse espelho a união
ocorre como pura e indivisa similitude.
O Sufi Suhrawardi de Aleppo (sóc.XIII) escreve que o homem no caminho para o Si primeiro
descobre que o mundo inteiro está contido dentro dele, o sujeito cognitivo; ele vê a si mesmo como o espelho no
qual todos os protótipos aparecera como formas efêmeras. Então ele torna-se consciente de que ele mesmo não
tem existência; seu "Eu" desaparece como sujeito, e apenas Deus permanece como Sujeito de todo
conhecimento.
Muhyi'd-Din ibn'Arabi escreve adiante : "Deus e o espelho no qual olhais a vós mesmos» e vós sois o espelho
d'Ele no qual Ele contempla Seus Nomes. Estes no entanto são Ele, e e meramente uma questão de inverter a
analogia das relações.(Fusus al-Hikam, capitulo sobre Seth).
Seja Deus o espelho do homem ou seja o homem espelho de Deus, em ambos os casos o espelho
significa o sujeito cogniscente, que como tal não pode também ser o objeto do conhecimento. Isso só e verdade
de modo absoluto quanto ao Sujeito Divino, a "Testemunha" ('Shahid') de todas as criaturas manifestadas; esse e
o espelho infinito cuja "substância" não pode ser apreendida de modo algum, mas no entanto pode ser dada a
conhecer num certo sentido, porque e possível ter-se o conhecimento de que apenas nela todas as criaturas
podem ser conhecidas.
Isso lança luz nas palavras, de outro modo obscuras, que Dante põe na boca de Adão. Referindo-se aos anseios
de Dante, Adão fala:
"Perch'io la veggio nel verace speglio
Che fa di sè pareglio all'altre cose,
E nulla face lui di sè pareglio."
(Eu a vejo no espelho verdadeiro
Que se torna o refletor de todas as coisas,
E do qual nada pode tornar-se refletor.)
Paradise, XXVI, 106
Farid ad-Din'Attar diz:
"Venham, partículas errantes, voltem ao seu centro, e
tornem-se o espelho eterno que vós vistes..."Suivre le flux RSS des articles de cette rubrique